As sobras do que já fui

Houve um tempo em que tinha plena saúde, soma razoável de dinheiro na conta, fôlego para jogar um “racha” na praia (meu time se chamava “Maré Baixa”), cabelo farto e preto e outras coisas mais que… enfim, não interessa (rs).

Principalmente pensava conhecer razoavelmente bem uma disciplina chamada “Direito Constitucional” e, além de dar aulas (por 40 anos, por aí), dava até palestras (aqui e alhures). Dizia enfaticamente aos meus alunos que qualquer norma (gerais ou individuais, como as decisões ou sentenças judiciais) só era válida (jurídica) quando encontrasse esteio na tal “Regra Suprema”.

Esta, por sua vez, era legítima quando elaborada por um órgão constituinte eleito especificamente para tal fim. A Constituição encontrava fundamento de validade na chamada (por Hans Kelsen) “Norma Hipotética Fundamental”, que dizia: “cumpra-se esta Constituição”. Ela existia, pois logicamente deduzida!

Os intérpretes das normas jurídicas (de índole constitucional, inclusive) não podiam ir além dos limites da “moldura normativa”, ou seja, dos gizamentos, máximo e mínimo, recolhidos da atividade cognoscitiva da regra sob exame. No dizer do referido Kelsen, a atividade volitiva do intérprete-aplicador da lei não seria ilimitada… nunca!

Aprendi, e ensinei (o que é mais trágico, já que devo rogar perdão aos meus ex-alunos) que o acusador não poderia dirigir o processo de apuração da suposta transgressão, muito menos julgá-la. Bem como que os réus (ou antes mesmo de isto se tornarem) tinham o inalienável direito ao devido processo legal e à ampla defesa técnica, feita por advogado inscrito numa instituição que existia e tinha notável e histórica atuação em prol do Estado de Direito (chamada OAB, de saudosa memória).

Os chamados “Poderes” – na verdade órgãos constituídos – hauriram suas competências (sempre limitadas, portanto) da Constituição, norma validadora de todas as manifestações normativas (estatais ou não). Esta, por sua vez, estipulava que TODO O PODER EMANAVA DO POVO, por meio dos seus representantes eleitos.

Acreditava piamente que toda eleição – e consequente apuração dos votos – haveria ser publicamente sindicável, ou seja, ter seus resultados documentalmente verificados e reverificados. Os cidadãos, além dessa prerrogativa de conferir se suas escolhas nas urnas estavam a ser induvidosamente respeitadas, possuíam a LIBERDADE de ir e vir (sem receio da atuação de gangues ou “facções” armadas ilegais) e de expressar livremente seu pensar, o direito à SEGURANÇA das relações jurídicas (sem qual sequer existe uma sociedade civilizada).

Enfim, eu sustentava que as autoridades policiais (que detinham, ou deveriam deter, o monopólio do uso da força contra criminosos) precisavam ser respeitadas, não “demonizadas”. O policial, alvo preferido dos facínoras, deviam ter proteção legal, áreas especiais para fixar residência (onde suas fardas poderiam ser lavadas e enxugadas em varais) e proteção “post mortem” (às suas famílias).

Tinha a pia convicção de que os detentores de cargos públicos (eletivos ou não) eram pessoas IGUAIS a nós, que não extrapolariam jamais suas funções legais e constitucionais, já que supostamente existia um regime REPUBLICANO. 

Um “golpe de estado” só existiria se, de fato, forças armadas depusessem o governo (legitimamente ou ilegitimamente eleito), não à conta de papelórios ou supostas “minutas”. Muito menos pela delirante ação de idosos, crianças e cidadãos de bem e pacíficos (os quais, em suas manifestações, nem lixo deixavam nas ruas e praças). Excepcional e raramente, em caso de flagrante ilegitimidade dos governantes de plantão, poderia haver uma “revolução” popular (não violenta, preferencialmente). 

Hoje vejo que não existe mais aquele “crente” que fui (*), aquele inocente esperançoso que via um futuro dulcificado. Tornei-me um homem angustiado, medroso, desesperançado. 

Afinal, enquanto pessoas de bem são presas, têm suas residências invadidas para surpreendentes “buscas e apreensões” e suas liberdades manietadas, os verdadeiros criminosos são soltos nas audiências de custódia (não sem antes receber uma coberta e tomar um cafezinho) e os corruptos (cuja ação delituosa e perversa provoca a mortes dos necessitados dos recursos públicos) são tornados livres e têm devolvidos aos seus pútridos patrimônios valores corretamente confiscados pelo Erário.

Tudo por “mérito” de uma canhestra e aterrorizante “togacracia” que faz valer a vontade pessoal e sem gizamentos de um “grão mestre supremo”. A minha outrora amada Constituição morreu, resta insepulta e está apodrecendo à vista de todos.

O que sobrou de mim foi muito pouco. Nem tenho mais idade nem dinheiro para fugir daqui (para a Antártida, talvez)… resta-me resistir com meus parcos neurônios, com minha palavras candentes, mas inúteis, sem repercussão alguma. Do antigo professor e “jurista” (que nunca fui) nada restou!

Ainda não desencarnei, mas me sinto como um Espírito a vagar num antecipado umbral (inferno, para os católicos e evangélicos).

(*) Creio em Deus e me submeto à Sua vontade, embora Ele simplesmente SEJA… não precisa de crenças (ou de religiões).

Valmir Pontes Filho é jurista e professor

Nicolau Araújo

Nicolau Araújo

Nicolau Araújo é formado em Comunicação Social pela Universidade Federal do Ceará, especialista em Marketing Político e com passagens pelo O POVO, DN e O Globo, além de assessorias no Senado, Governo do Estado, Prefeitura de Fortaleza, coordenador na Prefeitura de Maracanaú, coordenador na Câmara Municipal de Fortaleza e consultorias parlamentares. Também acumula títulos no xadrez estudantil, universitário e estadual de Rápido.

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